RIO – Enquanto o embarque no antigo bonde centenário de Santa Teresa misturava a sensação de uma viagem no túnel do tempo ao de uma aventura perigosa, os passageiros desses veículos históricos em Lisboa, capital portuguesa, desfrutam de um serviço que, além de charmoso, é confiável. A experiência na cidade, cheia de ladeiras e curvas como Santa Teresa, mostra que é possível preservar a história desse meio de transporte sem deixar que o tempo de vida dos veículos pese a ponto de fazê-los despencar morro abaixo. Os bondes de Lisboa mantêm sua aparência original, mas passaram por remodelações que os tornaram mais seguros para moradores e turistas.
Ironicamente, a operação do sistema por lá teve origem no Rio. Em 1872, foi fundada aqui a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, que até hoje administra os elétricos – como são chamados os bondes pelos portugueses -, além de uma frota de ônibus. Um dos donos da nova firma, o português Francisco Cordeiro de Souza, era cônsul no Rio e, por isso, a sede da empresa ficou aqui por quatro anos. Mas as atividades da Carris foram desenvolvidas só além-mar, e o primeiro elétrico ganhou as ruas de Lisboa no dia 31 de agosto de 1901. O aniversário de 110 anos do sistema de lá caiu na última quarta-feira, véspera da data em que os bondes de Santa Teresa completaram 115 anos. Só que as coincidências param por aí. Os moradores de Lisboa têm motivos para comemorar. Já os cariocas assistem ao auge da crise dos bondes, evidenciada com o acidente do fim de semana passado que matou cinco pessoas e feriu 57.
Decadência teve início nos anos 60
Na capital portuguesa, a reforma geral de 45 elétricos foi feita pela própria Carris entre 1995 e 1996. Morador de Santa Teresa, o chef de cozinha André Barreto viveu por quatro anos em Portugal e pôde sentir a diferença entre as experiências de viajar de bonde em seu bairro de origem e em Lisboa.
– Lá em Portugal, você vê que o sistema é bem cuidado. Fico até com certa raiva, porque você percebe que é plenamente possível a coisa funcionar bem. É uma questão de manutenção. Aqui, os trilhos estão muito abandonados, estragam os pneus dos carros. Os fios da rede elétrica caem a toda hora. O bonde, além de ser um transporte barato, não polui e tem tudo a ver com Santa Teresa. É meio como uma viagem no tempo. Precisa ser recuperado. Assim, ainda ficaríamos livres da correria dos ônibus – imagina Barreto.
A frota de elétricos da Carris, que opera ainda três planos inclinados de Lisboa, tem também dez veículos modernos, os chamados elétricos articulados, e dez elétricos originais, que não foram remodelados. Esses últimos não são usados no serviço normal, mas apenas em situações isoladas, como a de aluguel para empresas que queiram oferecer um passeio típico a visitantes. Comentando quais são os maiores desafios de operar um sistema centenário de bondes, o engenheiro Antônio Martins Marques, diretor da área de elétricos da Carris, na qual trabalha há 30 anos, destacou a importância da manutenção.
– Os elétricos remodelados tiveram mudanças em todas as partes elétricas e mecânicas. Mas eles usam tecnologias antigas também e, por isso, precisam de verificações diárias. Nos elétricos articulados, a frequência da manutenção não é tão grande – explicou Marques, que afirmou nunca ter visto um acidente grave, com mortes, em seu tempo de trabalho na área. – É importante ainda dar treinamento aos condutores. Temos 160 deles.
Segundo o engenheiro da Carris, para que um elétrico perca totalmente os freios, como aconteceu em Santa Teresa, seria preciso falharem três sistemas distintos, além do freio manual. O bonde que se acidentou no Rio, um dos sete que não passaram pela mo$ção da frota de 14 veículos encomendada pela Secretaria estadual de Transportes entre 2005 e 2009, dispunha de duas opções de freio e do recurso manual, de acordo com o engenheiro Luiz Cosenza, coordenador da Comissão de Análise e Prevenção de Acidentes do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea-RJ). Os bondes remodelados têm mais um sistema, o chamado “homem morto”.
– Se o motorneiro passa mal ou deixa o bonde, o veículo é travado automaticamente – diz Cosenza. – $acidente que houve em 2009 com um desses bondes foi causado pela destruição da caixa de freio, depois de uma colisão. Pedimos que se mudasse a posição da caixa, muito exposta, mas decidiram colocar barras de ferro como proteção.
Após o acidente de 2009, que provocou a morte de uma professora, Fábio Tepedino, diretor de engenharia de transporte da Central Logística, que administra os bondes do bairro, disse que o sistema de freios dos veículos remodelados era muito $ao antigo. Agora, por meio de nota, afirmou: “jamais questionamos a segurança do sistema de freios dos bondes tradicionais”.
A decadência dos bondes em Santa Teresa começou com a extinção do serviço no resto da cidade, em 1968, e se acentuou na década de 80. Mecânico dos bondes do bairro há 37 anos, João Carlos Lopes da Silva trabalhou com funcionários que vivenciaram a época da Companhia Ferro Carril Carioca, que criou em 1896 a linha ligando o Largo da Carioca a Santa Teresa. $1963, a companhia, administrada pela Light, entregou as linhas do bairro ao governo do então Estado da Guanabara. Esse foi o destino de todas as linhas da Light. Depois disso, elas foram gradualmente extintas, até 1968, ano em que os ramais de Santa Teresa se tornaram os únicos do Rio e ficaram órfãos da estrutura da Light, que, em 1962, mantinha o vaivém de 600 bondes. O primeiro desses veículos elétricos circulou no Rio em 1892.
– Entrei nos bondes em 1974 e ainda havia muita gente da Carril. Nós éramos muito mais respeitados. Os antigos diziam que, quando o último deles saísse, a coisa ia mudar. E mudou mesmo. Quando comecei, muitos deles ainda trabalhavam na fundição da Light, em Triagem. Lá, eram fabricadas as peças de reposição para todos os bondes do Rio – conta o mecânico João Carlos. – Nunca faltava peça. Depois, começaram a fazer fora. Só que o fornecedor precisava de um molde para fundir a peça. Isso encarecia o produto. Começou a faltar material. No fim dos anos 80, não havia mais ninguém da Carril. Aí, só piorou, até chegar à situação atual.
Uma tentativa de reerguer o charmoso meio de transporte foi feita a partir de 1997, com a reforma de bondes e a reativação do ramal do Silvestre, em cuja reinauguração esteve presente o historiador Milton Teixeira.
– Foi feito um bom trabalho, mas a situação já era muito grave. Com o fim do bonde no resto da cidade, as linhas de Santa Teresa passaram a viver de improviso e canibalismo (peças de um veículo sendo usadas no conserto de outros), com um trabalho artesanal – resume Teixeira.
Reportagem original: O Globo